A tempo de ver o carro dobrando a esquina.
Ouvi o distanciar do bangue-bangue
Enquanto enrolava-se em agonia e sangue
O corpo esguio da menina.
Pararam um táxi para prestar socorro.
Acomodaram-na com cuidado,
Usando uma colcha emprestada como forro.
A polícia chegou,
Ninguém viu nada,
Todo mundo nada sabia.
A única testemunha era o sangue no passeio
Por onde passeávamos todos os dias.
No breve silêncio desta soluçante realidade
Só me resta ter saudade de outros barulhos:
Das crianças brincando de bola,
Pique, carniça, saladas mistas tendenciosas,
De inocentes polícia e ladrão.
Da sineta do pipoqueiro,
Do carrinho de sorvete,
Da cigarra na bicicleta do garoto trazendo o pão.
Valha-nos o Deus destas cidades!
Do meio-fio da navalha por onde andava o sossego,
Antes de ser pego de surpresa
E tombado sobre o tabuleiro pintado
No tampo de pedra da mesa.
Existe hoje no local um modesto altar
Onde pedem graças os desvalidos,
Diante uma pequena cruz e algumas imagens,
Velas acesas e pedaços de papel com pedidos e mensagens,
Todas elas fartas em fé e sofrimento.
- Continuam sendo feitas apostas naquela placa de cimento.
Valha-nos o Deus dos lares de paredes finas,
Das janelas sem blindagem e sem cortinas.
Dos túneis, vias, dos bares pela cidade,
Dos bordéis, motéis e até da Igrejinha da comunidade,
Onde a celebração matutina foi interrompida
Quando uma bala perdida estilhaçou os vitrais,
Partindo em pedaços a imagem da pomba da paz.
O povo tentou juntar os cacos
Mas eles não se encaixavam mais.