quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

As rosas poéticas (Alexandre Damasceno)

“- Cuidado para não sujar a roupa!”

 Eu parecia escutar em meus ouvidos a voz de minha mãe. Todas as manhãs ela espantava minha sonolência com um beijo e um afago na cabeça. Do alto dos meus oito anos eu não lembrava como era a vida antes daquilo. Pensando bem, talvez não houvesse mesmo vida antes. Fui até o banheiro escovar os dentes e tomar banho para vestir o uniforme da escola, enquanto mamãe punha o café na mesa. Éramos nós dois e meu vô. Papai morrera, acometido de tuberculose, quando eu ainda era um bebê. Meu avô morava conosco desde quando eu me lembrava. Saí do banheiro para cumprir a deliciosa rotina das manhãs. Sentei à mesa com as duas pessoas que eu mais amava no mundo. Minha mãe olhava para mim e sorria, esperando a pergunta. Eu me aprumava na cadeira, e deixava transbordar através dos olhos todo o entusiasmo:

 “- Vô, e então? Qual é a de hoje?”

 Vovô abria seu mais franco sorriso, inclinava-se na minha direção, deixando sua voz mansa preencher calmamente todo o ambiente:

 “- Vivi muitas vidas,
 Conheci terras
 Em eras distantes no tempo
 Mas meu amor era um só
 Alcançava-me como o vento
 E, em redemoinho,
 Fazia a poeira da saudade levantar.
 Acariciava-me a face Sussurrando meu nome.
 E eu sabia: Tinha que voltar.”

 Seus olhos então refletiam os meus, enquanto eu pulava e aplaudia, quase derrubando a mesa do café para desespero de minha mãe.

 “-Vovô! Eu queria escrever igual a você!”

 E ele dizia, sorrindo:

 “- Você vai, meu neto. Se o amor no seu coração for grande o bastante.”

 Eu ria. Amava muito os dois, mas não sabia como algum dia poderia escrever daquela maneira. Todos os dias uma poesia diferente? Não, definitivamente eu não conseguiria. Ainda pensava nos acontecimentos daquela manhã enquanto chutava as poças d’água a caminho de casa na volta da aula. Passei pelo portão e vi minha mãe parada à porta, no final do corredor. Olhei para mim mesmo: o uniforme estava em um estado lastimável, depois da chuva e do futebol com os colegas. Preparei-me para a bronca enquanto aproximava-me da entrada da cozinha. Parei na frente da minha mãe, de cabeça baixa, esperando. Nada de palavras, apenas um soluço sufocado. Ergui minha cabeça até meus olhos encontrarem os dela. Pareciam transbordar. Mamãe me abraçou. Senti meu coração esmagar-se no peito e só consegui balbuciar uma palavra em forma de pergunta:

 “- Vo-vô?”

 Mamãe ajoelhou-se na minha frente. Segurou-me pelos ombros e tentou parecer o mais calma possível:

 “-Vai ficar tudo bem. Ele passou mal e foi levado para o hospital.”

 Fiquei parado onde estava. Não conseguia me mexer. Tinha medo de perguntar alguma coisa e obter respostas que não queria ouvir. Em silêncio, mamãe levou-me para dentro. A mesa do almoço já estava pronta, mas, para mim, parecia que não. Faltava algo. Faltava alguém. Tomei banho e sentei-me à mesa, achando tudo muito estranho, quase surreal. Não lembro o que comi, apenas da pressa em acabar. Precisava ir ao hospital. Senti a relutância em minha mãe, mas ela não tentou dissuadir-me da idéia.

 Chegamos ao hospital quando ainda faltavam cinco minutos para o início do período de visitas. Foram os mais longos cinco minutos da minha vida. Meu coração parecia demorar uma eternidade entre uma batida e outra. Fomos direto à enfermaria. Era um lugar grande, cheio de camas, todas com pessoas em cima. Minha mãe pedia licença e me levava pela mão. Algumas pessoas conversavam com os doentes, alguns sorriam. Outros choravam ou simplesmente ficavam em silêncio. Eu via as camas passando por mim até que, no final da enfermaria, vislumbrei algo conhecido. Pendurado na cadeira estava o casaco do meu avô. Era seu preferido, tinha sido feito pela minha avó. Ao lado da cadeira tinha uma cama, com uma pessoa deitada cheia de fios e tubos. Era meu avô. Minha mãe levantou-me para que eu pudesse vê-lo. Sua fisionomia parecia tranqüila, por baixo de todas aquelas coisas. Comecei a chorar. 

 “- Chora não, filho.” – a voz era calma como sempre. Vovô havia aberto os olhos e esboçava seu sorriso para mim. Esticou a mão para mim. Havia algo preso nela, com um tubo em uma espécie de pedestal de onde pingavam gotas de um líquido parecido com água. 

 “- Vamos para casa, vô!” – choraminguei. Ele respirou fundo e tentou sorrir novamente:

 “- Agora não. Vovô precisa descansar. Mas antes quero que você faça uma coisa para mim...”

 Virou-se para minha mãe:

 “- Deixe-me falar com ele um instante.”

 Mamãe puxou a cadeira para perto da cama e colocou-me em pé. Debrucei-me sobre meu avô enquanto ela se afastava. Vovô então me disse: 

“- Chegou a hora de eu te contar um segredo. Mas você tem que prometer que vai guardá-lo consigo até a hora certa.” 

“- E quando será a hora certa, vô?” - perguntei. 

“- Você vai saber.“ – ele respondeu. Respirou fundo novamente, como se quisesse buscar todo o ar do mundo e guardá-lo para si. E continuou:

 “- Você se lembra da rosa?” – perguntou, tossindo em seguida. Pensei no pequeno vaso com uma rosa, que sempre ficava no parapeito da janela do quarto do meu avô. 

 “- Lembro sim.” – respondi. Ele esperou um pouco e continuou:

 “- Vou te contar a história da rosa. Quando conheci sua avó nós dois éramos muito jovens...”

 “- Iguais a mim?” - Interrompi. Vovô quase se engasgou com a risada.

 “- Não, não! Nem tanto. Eu tinha vinte anos e sua avó dezoito. Namoramos durante muito tempo até nos casarmos. Mas essa é uma longa história...”

 Pigarreou e prosseguiu: 

“- Nós ficamos juntos a vida inteira. De nosso amor nasceu sua mãe. Você ainda era muito pequeno quando sua avó morreu. Lembra quando eu comecei a falar poesias para você?”

 Balancei a cabeça negativamente. Ele assentiu: 

“- Eu desconfiava. No dia em que sua avó morreu, eu fiquei perdido. Entrei em desespero, não sabia como conseguiria viver dali para adiante. Estava sozinho no quarto e em algum momento perdi os sentidos, desmaiei. Sonhei com a sua avó. Ela parecia linda e radiante como sempre. Perguntava-me o motivo do desespero. Eu respondi que não conseguiria viver sem ela. Com um sorriso aberto, disse-me que nunca sairia do meu lado se meu amor fosse grande o bastante...”

 “- Como?” – perguntei. “- Foi o que perguntei também.” – disse.

 E continuou:

 “- Ela disse para eu olhar na janela. Haveria uma rosa vermelha que deveria ser regada com amor todos os dias para não morrer.” 

“- Regada com amor.” – repeti, mecanicamente, enquanto meus olhos vagavam no vazio. Ele percebeu que eu tinha entendido.

 “- Agora você sabe o que precisa fazer.”

 Fiquei apavorado: 

 “- Mas não, vô! Eu não sei fazer isso! Você vai voltar pra casa, pode continuar fazendo!” – disse. Ele olhou para mim, parecendo achar graça do meu desespero:

 “- Você me ama?” – perguntou calmamente.

 “- Com todo o meu coração!” – respondi. 

“- Então, não tenha medo, você vai conseguir. Eu nunca estarei longe de você.”

 Senti sua mão ficar fraca. Seus olhos fecharam e ouvi minha mãe soluçar atrás de mim. Gritei seu nome, mas ele não me respondia mais. Vi um homem alto, vestido de branco, conversando com mamãe. Ela limpou os olhos com as costas das mãos e me abraçou forte. Senti seu corpo estremecer. Ficamos assim por alguns minutos.

 Despedimo-nos do vovô em um belo campo florido. Muitos amigos estavam presentes, cantando músicas que ele gostava. Por mas estranho que pudesse parecer senti-o presente. E feliz. Por um momento pensei em escutar sua voz, falando poesias.

 Ao voltar para casa, tudo me parecia amplo e vazio. O silêncio parecia esconder-se pelos cantos, esgueirando-se por detrás dos móveis no meu encalço. Minha mãe foi para o quarto descansar um pouco. Tentei ficar na sala, depois no meu quarto, no banheiro, na cozinha... Por todos os cantos da casa o vazio me perseguia. Vi a porta do quarto do meu avô entreaberta. Por um momento, achei que era só empurrá-la e dar de cara com ele, sentado na cadeira ao lado da cama, escrevendo em seu livro de anotações. Entrei no quarto vazio. Estranhamente, o silêncio não me fez companhia. Pelo contrário, sentia algo elétrico no ar. Lembrei-me da rosa. Fui até a janela e, para minha surpresa, não havia apenas uma rosa no vaso. Ao seu lado, brotara um pequeno botão, ainda fechado. Corri para a cozinha e busquei um copo de água. Quando derramei um pouco sobre o vaso aconteceu algo que me fez prender a respiração: as pétalas da rosa e do botão esmaeceram suas cores e os caules torceram-se como se sentissem dor. Parei imediatamente. Andava de um lado para outro do quarto, com as mãos na cabeça. Não podia deixar as rosas morrerem. Não podia decepcionar meu avô. Sentei na cama e chorei de desespero até adormecer. Já era manhã novamente quando abri os olhos. Ao meu lado estava o caderno de anotações e um lápis, os quais eu não notara antes. Folheei e reconheci as palavras. Eram as poesias que meu avô falava para mim todas as manhãs. Restavam algumas folhas em branco. Peguei-me olhando para uma delas e pensando nos momentos que passamos juntos. Instintivamente, agarrei o lápis e comecei a rabiscar palavras: 

“O menino quer aprender a escrever 
Contar histórias como você 
Transformar seu amor em palavras 
Para que, um dia, todos possam ler.” 

 Quando olhei para a janela, o botão novo desabrochara e as cores esmaecidas já tinham abandonado as rosas. Minha mãe abriu a porta: 

“- Você estava dormindo tão profundamente que tive pena de acordar. Venha, o café está na mesa.” – chamou.

 Sentei à mesa com o caderno debaixo do braço. Os olhos tristes de minha mãe fitaram-me por um breve instante:

 “- Sei que é estranho estarmos aqui sem ele, mas...”

 Não a deixei concluir:

 “- Ele está aqui, mãe.” – eu disse, abrindo o livro. Quando terminei de ler minha primeira pequena poesia o rosto de minha mãe iluminou-se. Ela me abraçou, sorrindo e chorando ao mesmo tempo.

 “- Foi lindo, filho. Seu avô deve estar orgulhoso.” 

 Eu tinha certeza de que ele estava.

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